SOBRE A POÉTICA DE ANNA LIZ
" A madureza, essa terrível prenda
que alguém nos dá, raptando-nos, com ela"
Carlos Drummond de Andrade
Quando alcançamos a idade madura? Talvez seja esse um dos maiores enigmas da vida. Do tempo sabemos pouco, senão que ele acontece transcorrendo-se, mudando, em seu ritmo fugaz, os rostos, os corpos, os fatos, transfigurado-nos em ausências e perdas dificuldando assim nosso exercício de identificar a nossa própria face. Vamos sabendo do tempo e que o fomos vivendo quando olhamos para um objeto e ele nos remete porosamente a algo que perdemos, quando fitamos os retratos e percebemos que os momentos não estão parados senão lá, em um tempo fora da realidade, quando, em um reflexo, olhamos a nossa própria face e com​ a bancada de espanto, uma pergunta cai em nossa alma: esse sou eu? O que tenho sido?
Essas reflexões são o fruto da maturidade que a grande escritora Anna Liz alcança no seu novo livro, sob(re) a pena escondida. Nessa novo trabalho, a nossa poeta percorre os descalabros do tempo, o desapego perecível do corpo, paira pelo indizível corte do silêncio, com a delicadeza de uma pena socorrendo vozes​ na inutilidade do grito. O livro é dividido em três partes, sob(re) a outra face, sob(re) o mistério do olhar e sob(re) a pena gasta. Os desalinhos desses fragmentos denotam uma artista se autoconhecendo em uma fala inconfessável, rasurando e rompendo a linguagem procurando reconstruir o inapreensível instante de sua nudez despida, observando como quem canta o exercício inadiável do tempo desfolhando-a levando assim nossa poeta a descobrir o perene cerne do seu ser.
No sob(re) a outra face, primeira parte do livro, Anna nos conduz para um conflito intimista e profundo, entre o tempo impessoal e o tempo poético, antagonismo concernente de uma artista que passa por um processo de amadurecimento humano e artístico, como é o caso da nossa escritora. Esse conflito é encontrado nos seguintes versos do poema o Espelho e a Face:
"o que de mais horrendo poderá haver
neste reflexo, senão a aspereza, a rugosidade,
a face disforme, o olhar sem esperança?
a guerra entre o tempo e a face
é uma guerra perdida..."
O impessoal é o tempo do efêmero, das ilusões diluídas, da mente líquida inundando de lembranças vãs o corpo impalpável, da imagem esvaecida tragando gritos inidentificáveis. É o tempo do vazio, pois todas as coisas se transformam, flui em um mar Inaudito de remorso e saudade. Já o tempo poético, é a procura do eu lírico de afirmar o alumbramento do imperecível, do eterno. É o olhar da poeta na busca de esboçar o movimento do tempo lutando assim para salvar um instante de vida. A maturidade é esse momento de repararmos o quanto tudo tem sido rápido e efêmero, entretanto, a nossa escritora, passa por essa fase utilizando do canto poético para socorrer do breve o eterno, que se expressa no seu próprio canto lírico. O tempo poético é a forma que a nossa poeta encontra para libertar-se da angústia de refletir sobre as ausências e perdas da vida. Entre essas ausências percebida pelas passagens do tempo está a falta mesma de uma identidade sólida, como podemos vê no poema Autorretrato III:
"O peso da mão do tempo
é púmbleo
racha em minha tez
córregos profundos
e ressequidos
e as vísceras ocres
acres, disfuncionais
já não tragam
a primavera"
O retrato de si é o movimento do tempo rabiscando em seu corpo a fugacidade da vida. Nesse deslizar interrupto do tempo, a poeta procura alguma realidade consistente para seu respaldo existencial:
"sou bicho abandonado
cansado
esmagado
diluindo-se ao sabor do tempo
agarro-me (como quem desiste)
a um fio solto de vida..."
Mas a luta contra o transcorrer dos instantes é uma luta vã, uma identidade estática e inflexível é impossível contra os desígnio do tempo. Dessa maneira, a poeta chega a uma única conclusão de si:
"sou sem ideias,
sem ideais
sou vácuo,
inexisto
e me prefiro assim
apática
despercebida.
não quero ser interessante,
apenas uma errante..."
Portanto, nessa primeira parte do livro, vemos uma mulher refletindo poeticamente sobre a sua maturidade, que é justamente a percepção desse colossal amontoado de perdas que estão impregnados no seu rosto nenhum. Uma mulher que depois de viver percebe que o repouso é remorso e que permanecer vivo é se compor de desalinhos que se vão apagando ao sopro fugaz das horas. Como podemos vê na seguinte imagem do poema Diário de Maria:
"Estou aqui, bem aqui
por detrás do tempo
que passa em silêncio.
as horas duras são
meu alimento"
Na segunda parte do livro, sob(re) o mistério do olhar, Anna Liz se volta para a temática do amor e das desilusões amorosas. Esse conteúdo lírico, no trabalho da poeta, é como um pêndulo percorrendo dois pólos: o transcendental e o carnal. Essa dialética é o que marca a angústia poética da Anna Liz. O amor trabalhado na lírica da nossa escritora é a procura de direcionar suas paixões e anseios a um ser absoluto. Por isso, esse amor é um sentimento inatingível, inalcançável, da procura eterna de um encontro realizado fora da realidade. Um namoro com um devaneio transcendente e irrealizável. O amor amando a própria capacidade inabortável de amar:
"não quero te encher de vazio
quero te encher de amor
e quero-te desarmada
entregue livre leve
e amparada neste ninho
que me faço só para ti."
Entretanto, esse Eros a uma imagem absoluta e vazia, acarreta um erotismo melancólico, traço característico da nossa escritora. Esse sentimento de ausência arde brasas na carne indefinida do eu lírico, esse amor ao nada - que é, ao mesmo tempo, um amor a tudo - norteia o processo criativo e imagético do corpo, que padece quando a alma deseja o ausente, como os ultrarromanticos:
"inunda-me a face
uma lentidão vazia
ardem meus olhos
doridos de desejos...
quanto por ti já morri!"
O amor é um chamado não respondido - características da própria natureza desse amor - que se contorce na musculatura sonora do corpo. É ardor e matéria em luta mergulhando no grito transfigurado da poesia. A Anna Liz suporta incêndios em sua alma, o amor a banha de líquido inflamado e o seu canto poético é a demarcação anedótica de suas intragáveis cinzas poeris.
Na terceira e última parte do livro, sob(re) a pena gasta, a escritora reflete acerca do seu próprio ofício de poeta. Essa seção metapoética, representa uma consciência aguta da autora sobre a criticidade de seu própria fazer artístico. Anna ao fazer uma reflexão existencial sobre a transitoriedade da vida acarretando amores ausentes e perdidos, se preocupa também com a sua própria condição de escritora, denotando uma linha que liga o simbolismo imagético das palavras com a sua existência imersa em uma solidão melancólica e intimista solta ao desamparo do mundo despossuído de materialidade e densidade substancial.
"a mão da poeta
é uma mão estendida
sem ninguém para acudir"
Refletir sobre a noção de efemeridade da vida, as circunstâncias limites da sua própria existência, a fazem pensar também sobre o seu canto, já que sua voz poética é a própria expressão do seu pensar. A consciência dessas noções passa imprescindivelmente pela consciência que ela tem de sua própria capacidade de expressá-los artisticamente. Anna, enquanto escritora, fala apenas pela voz silenciosa e angustiante da palavra, podendo apenas entender da sua condição humana quando ela entende de sua visão metafórica e imaginativa do mundo. Escrever sobre sua poesia é pensar acerca do seu único meio na qual a poeta apreende fenomenologicamente o seu macrocosmo, o seu universo circundante. A noção de brevidade das coisas, o sentimento de fragilidade de sua disposição humana, a fazem perceber um ocre vazio de sua própria identidade, que se torna também o vazio de uma essência de sua poesia:
"não faço versos de protesto
não faço versos de guerra
não espere de mim
um grito de alerta"
Esses versos representam também a linha temática que essa livro se propõe a percorrer: as veredas intimista de um eu diluído e disperso. Em suma, a metapoesia da Anna Liz é o resultado desse momento de reflexão acerca de sua própria existência e, como poeta, sua vida consiste na sua escrita, em sua condição enquanto escritora, por isso, uma meditação sobre sua poesia seria praticamente irreversível nesse contexto de maturidade pessoal.
Enfim, essa grande obra é a expressão de uma artista madura, que na procura constante do âmago imutável da vida torna a própria transitoriedade do tempo uma figura principal de sua poética. O livro é marcado por uma profunda meditação sobre a brevidade e a transitoriedade das coisas, a velocidade dos instantes decompondo os diversos tecidos da existência. A poesia nasce como fruto da melancolia da escritora em não poder reter o fluxo da vida, podendo apenas assistir impotente o avassalador barulho do efêmero, "o mal cheiro da memória". Os próprios desencantos amorosos são consequências lógicas desse mundo marcado pela mutabilidade, onde nada é nascido para durar, onde a ausência é um sentimento constante do tempo. A angústia se torna a síntese dessa realidada antagônica, feita por uma sequência finita de momentos, mas que, ao mesmo tempo, essa finita sequência acontece de modo tão intenso que se torna inesquecível na carne trágica da poeta, tornando-se eterno na sua própria transitoriedade, como se os fatos durassem no interior do instante que corre. Esse Infinito fugaz é a matéria do drama da Anna Liz, mas é também a possibilidade da superação da realidade existente. O Tempo tratado no livro é um tempo espessos, transcendente à concepção tradicional de tempo. Onde o eterno suspende o transitório, onde o inalcançável é conseguindo em um espaço-tempo imaginário, em que o sublime e o ordinário se entrelaçam instituindo uma relação de rompimento é renovação constante da vida, essas tensões faz com que a poeta seja e não seja, apareça no desaparecimento e permaneça na ausência. Essa dialética é medular nesse novo livro da nossa escritora. Anna Liz nos leva a mergulhar no seu mar interior de imagens transfiguradas, de vozes imperceptíveis acontecendo nas vertigens das coisas, nos convida a enxergar a etérea feição inconstante da vida. A poesia da Anna é brisa laminada, cortando o ínfimo, sobrevoando sob(re) o eterno. É fissura que dá asas a nossa alma liberta.
Marcelo Henrique Sousa - escritor
Enviado por Anna Liz em 31/07/2018